quinta-feira, 11 de agosto de 2016

Bruna Mitrano









































ela pediu pra eu não enlouquecer
parei de tomar os remédios pra tentar ser gente
mas uma chuva forte caiu
era janeiro
e me escorreguei
perdi o senso
disseram
é temporário
os tremores noturnos
a matriz de uma ânsia descabida
os rostos na janela
todas as noites
os rostos que catequizam as janelas
nas casas sem muro
não há o que se ver que não sobrecarregue a carne
o corpo ainda sente
curva-se ao inevitável
tomba no meio da rua e conclui
não se dá as costas pra morte
há sempre um diagnóstico
preto no branco  
vou morrer de tempo ou
vou fazer o quê?
re:___________________.
   

xxx


o homem abocanhava
a pele elástica de frango atirada
à calçada.
comia por todas as necessidades,
acocorado em sua miséria.
com os dedos empapados,
gargalhava e puxava o cabelo,
no transe de ser ignorado.
















































sem virar a cabeça
me pergunta a hora
de ir eu não sei a hora
de ir eu nunca sei
como me curo de mim
mas sabe Iolanda
velha louca bruxa
nasceu mirrada e virou deus
queriam fosse vermelha
era preta e quem diria
no sino do trovão escalava o tempo
e gritava de ir bem
ir bem ir bem ir bem
quando a areia deitava na palha
chão de terra batida tirava sandália
e dançava Iolanda
que os urubus sobrevoavam
a caspa pisa da mulher abru
pta quem diria Iolanda era deus.


xxx


rasgava a camisa com os dentes
a raiva desnudada de pavor
e se deixava à beira
como adestrar a mão convulsa?
o mijo morno entre as cobertas era como peitos grandes pietá
aninhava-se no turbilhão do que era
reconhecia
seu corpo
erguendo à boca a própria armadilha
e lembrava das frutas que nasceram podres
as que nasceriam pra sempre. 


















































ainda falava em reparação
o nariz bicando a asa de frango frita
boca e mãos luzindo engorduradas
meu bem, seu amor é patético ao meio dia.
e a cara amarela desde a manhã
se havia
um grito vinha da cozinha
geladeira velha
bebo água e a voz grave do vizinho me treme
outro copo quebrado
varro mal
esqueço e
ah esse calor terrível
deito no chão
você acha que vai chover?


xxx


choque
uns passos
segundo plano
acho que vi um milagre!
acho que vi!
as mãos estavam vazias
quando o homem louco
aos berros no meio da rua
esclareceu
o último gole
a raiva ainda alinhada
é difícil, ele disse,
morrer.

















































já não alcançava seu sono
lembrava de quando podiam ser tristes juntos.
soubesse a hora de ir, calaria
e encolheria o corpo raquítico sob a coberta embolorada.
por outro extremo, lacunava-se em palavras rasas,
entregue, farta, extasiada
que não pesasse ser pó, havendo mãos. 


xxx


a cabeça de lado, o pelo na língua, os roxos na pele. aqueles homens apaixonados pelas coisas erradas, pelas pessoas erradas. estive muito tempo dentro dos dias, e não olhar pra trás era o mesmo que pedir não me deixa ir. mas há beleza no hálito doente, nas vicissitudes dos corpos, no rasgo imprevisto na carne, e não tão só, quando a espera é o grito.


xxx


puta que pari um bicho morto
risco indócil na coxa
barulho oco dos coágulos esbofeteando a água da privada
estilhaços imagens
o enquadramento impreciso
aparar as arestas até triturar os ossos do rosto
as unhas perfuram lentas a boca grande calada
é preciso fugir pelas beiradas
sem alarde

















































o ruído dos dedos esfregando a barba
os olhos inarticulados nos pesadelos diurnos
as luzes fragmentadas nas paredes exaustas de tantas
falas –
era quando fingíamos ser livres
e em silêncio cada um olhava pra si
desconjunturando a barbárie desses tempos
inaudíveis.






Bruna Mitrano (1985) é favelada, professora da rede pública e mestre em Literatura Portuguesa (UERJ). Em 2010, esteve entre os vencedores do Prêmio Off-Flip. É autora fixa na revista Mallarmargens. Tem textos e desenhos publicados nos: Contemporary Brazilian Short Stories (Califórnia), Flanzine (Portugal), jornal Plástico Bolha, revista Germina, Zine Joia, blog da Confraria do Vento, blog da Editora Oito e Meio, Fórum Virtual de Literatura e Teatro, revista Tlön (Portugal), revista Diversos Afins etc. Participou das antologias Algum vazio nesta paz fajuta e Clube da Leitura Vol. III. Seu primeiro livro – Não – será lançado em breve pela editora Patuá.



11 comentários:

  1. Gostei bem mesmo, mais dos três primeiros textos. Muito do da Iolanda. Pra mim o melhor. Dos desenhos, o último, saia vermelha... Mas é tudo poderoso. Siga, Bruna.

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    3. meu celular responde sozinho, ó, rs. obrigada mesmo por ler e me dizer o que gostou. pode dizer se odiar também. gosto muito disso. mil obrigadas

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  2. Descobrir agora a sua poesia por conta do professor de Questões da Literatura que estar usando nas aulas o jogral com poemas contemporâneo e estou embabacada com suas poesias arrasa viu mulher...

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  3. Queria comprar, mas autografado... Será que seria possível? dei uma pesquisada também no youtube e tipo muito bom, parabéns!

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