na nossa pequena fábrica de ruínas
eu pedalo indoors
porque não sei bem o que faço
com tamanha liberdade
tenho um pouco de medo dos grandes espaços abertos
por isso os círculos
por isso
eu puxo os
aparelhos ergométricos pelos guidões
um suave deslocamento sem [realmente] sair do
lugar
puxo a bicicleta pelo guidão riscando o chão da
sala
como se segurasse
um touro pelos chifres
~um minotauro ex machina
de uma mitologia recém-criada ~
e finjo assistir um seriado sentada
ou termino um romance russo esfarelando
páginas amarelecidas
compreendo bem todas as suturas
do mais célebre parricídio da literatura
por isso os círculos
por isso
as tentativas insalubres de figurinos extras
como se estivesse finalmente preparada
para ocupar o papel de protagonista
e esses furos acidentais
seguem perpetrados pelos dedos
ou pela máquina de costura?
por isso
os capilares intradérmicos
perfurando invisíveis
partes ainda por vir
do
meu corpo
e o aprendizado lentíssimo
da pecilotermia
meus
minidemônios meridianos
brotando barbatanas brânquias
braços
enquanto fraturo
ossos imaginários
para acolher
em silêncio
uma
nova ordem
de feras
por isso
você
sabe
os círculos
xxx
"escrevo
teu nome no grão"
por tudo o que tomba
sem se reerguer sem
sequer lembrar da queda
pela sombra
que nunca é proporcional
à luz
pela sombra
que não é proporcional
de maneira alguma
à luz
te escrevo o nome
onde se escondem
as montanhas
onde o sinal do celular
n ã o pega
nãopega nãopega n-ã-o
pe-ga
escrevo ainda
com a tinta
que extraio dos moluscos
que aparecem mortos
pela praia
no inicinho da manhã
pelo esquecimento
compulsório
da
q
u
e
d
a
"escrevo o teu nome
no grão de arroz"
porque saturno retorna
fora de hora
e a sombra não é
proporcional
ao facho de luz
que te acompanha
[e é um absurdo que a
luz
produza tantos monstros
com tamanha facilidade]
porque há sim pulsação
nos vasos
altamente periculosos
das minhas pernas
e por tudo aquilo que
tomba
sem levantar-se:
toma este grão luminoso
onde te escrevo o nome
devidamente instalada
na virada invisível
do rio
xxx
"uma
mulher sob influência"
queria escrever um poema
sensorial, um sobrevoo rasante, ébrio, erótico,
com palavras que
pudessem salvar algo disto aqui, mas o poema ele fracassa.
o poema fracassa justo
onde eu preciso ser salva, justo onde eu, como gena,
mabel, como outras, como
todas as mulheres que levantam os braços e rodopiam
com ou sem roupa, pelas
ruas ou entre paredes, em silêncio ou aos berros,
justo onde enlouqueço numa
sazonalidade que não omito
mas não controlo.
queria escrever um poema
que colasse no corpo como um drink açucarado que seca
sobre as pernas no dia
seguinte após ter sido derramado numa noitada sem que fosse
sequer percebido. mas o
poema fracassa porque esta loucura
porque esta loucura tem
o formato de dunas que se movem
lentíssimamente durante
a noite, rearranjando uma nova paisagem estática
ainda que movente a cada
dia.
o poema
ele não se curva
ele é tão
domesticável quanto uma onça
fumando
charutos cubanos.
mas se você superar isto
e seguir adiante, o poema te oferece
uma
delicadeza selvagem
como a de um gato que
brinca monotonamente com um balão de gás
já
meio murcho,
rolando-o pelo chão com
as patas e unhas, mordiscando de leve,
sem o destruir.
queria mesmo que o poema tivesse uma
qualidade profética,
que inaugurasse um
universo paralelo
mas o poema é bidimensional; ele tem
a velocidade
de gotas descendo espáduas
octagenárias, incorrendo
em cada vinco, hesitando nos
profundos sulcos,
ensaiando um desvio
a cada
acidente epidérmico
causado pelos anos.
xxx
"teresa"
para aquele que tem mar no início, meio e
fim
tenho te escutado
com considerável
dificuldade,
como aos balbucios
morninhos
que escapam de um gato
sobressaltado
durante um pesadelo
-- baby, por cierto,
¿sabes?
con qué infierno
sueñan los gatos?
não me resta outra opção
senão organizar meu
tempo:
a) categorizando
objetos;
b) esculpindo sisos
extraídos;
o fato é que crio pontes
de heras
para tuas frágeis
elipses
e faço de mim tua vodca
em tempos de crise.
você, tez amadeirada
de contorno impreciso.
você, puro pêndulo
que eu sulco, inteiro
justo naquilo que se
arrepende
a i n d a n
o a r
inseguro
e densamente noctívago.
eu, a primeira lasca
-- goiva
de duas pontas
feito lança que arpoa
em cheio
mas
não
retorna.
xxx
"dos
rumores que se instalam"
não posso dizer que
ignoro com seriedade
a consciência do medo
nas gengivas
e a eletricidade que
alimenta
o corpo venoso brutal
da vergonha porcamente
equilibrada nos joelhos.
como é possível
que a despeito de tudo
as gentes sejam?
que sejam com pavor,
e dentes caninos a
mostra,
mas que sejam.
a mim, é impossível
deslizar com graça
por essa existência
de pequenos naufrágios
de impossibilidades
rotundas
de quebra-mares.
ouço um fino assovio
que assegura
o cativeiro de muitas
feras
nos porões deste navio
e sei dos rumores
instalados, pesando
sobre
grossas cordas e velas
içadas:
o coração batendo vivo
no fundo desta caixa.
xxx
"supernova"
tenho contido
entre os dedos
uma resolução
cabisbaixa ante o sono
eis que tenho evitado
meus próprios olhos
em reflexos
vidros polidos
cobrindo espelhos
como se faz após uma
morte
ou na iminência
de tempestade
de raios
palavras setas
galáxias em colapso
em templos
esvaziados
panteões
em abandono dorsal
um desterro nuclear
é preciso sobretudo
saudar
a colossal quantidade
de massa
concentrada
em um minúsculo ponto
no universo -
nada escapa
à tua força
gravitacional
nem mesmo a luz
nem o início
o sentido de todo amor
e do mundo inteiro
nem os artistas e os
estetas
os anjos com trombetas
isso tudo indica
que sofremos de
qualidades extintas aladas
estrelas em último estágio
de evolução
é bem verdade que
nêutrons
[tuas palavras agônicas]
não nos salvarão
pois deste sistema binário
fechado fecundo
em órbitas circulares
não se sai com graça
nem de graça
perceba
há um preço
se uma
força
aplicada
a uma massa
de um corpo
em r e p o u s o
é d e r
i v a
tudo há de ser
impermanência
: m
a r
do início
ao f i
m
[ do fim ao
i
n í c i o ]
dos tempos
xxx
"nota sobre um inferno astral em quase
dezembro"
ou
"prove que não sou um robô"
hoje falo por mim,
eu
[gargalhadas]
que suo gotas
constrangidas
ao ouvir minha própria
voz
ao telefone
como a de um estranho
falo por tudo aquilo que
fala
por intermédio de um
vermelho
terroso violento atroz
como em
modigliani, como no
abstracionismo russo
que
mata poetas
em linhas
geométricas
e por todos
aqueles que golpeiam os
telhados
como gatos
revolucionários
por toda e qualquer
sensação existencial
[na fronteira
anatômico-imaginária
entre boca do estômago e
pulmões]
por todo sentimento
filosófico-existencial
de terreno baldio
inviolável
selvagem como um poodle
abandonado
no parque
como uma abelha rainha
presa por um barbante
inauguro hoje com a
ponta dos pés
essa hospedagem ambígua
na casa número doze do zodíaco
onde é preciso prestar
contas
à esfinge moderna
com senhas
de letras e números
e enigmas insolúveis
"prove que você não é um robô"
[
] não sou um robô
prove
que
não
sou
um
robô
xxx
tua queimadura de sol
invoca a existência
de um metabolismo
secreto
pois, quando gotas do
tamanho
de gatos siameses
pendem
pelos teus cílios
compridíssimos,
teu corpo inaugura
essa dança de exílio
: porque o amor é a causa de tudo
que levanta v o o
e pousa sem
memória.
a hora do chumbo
é nossa
pois há algo
de profundamente tocante
no teu desespero ígneo,
no torpor vaporoso que
tomba
de
nosso limbo doméstico;
há algo de bárbaro
no desalento único, tão
teu,
na sombra de dois corpos
consonantes
e por isso mesmo
aterrorizados,
prodígio do fulgor
de carne, dentes, pele
e pelos.
nosso
caso é antigo, oxóssi
caçador -
flecha disparada na mata cerrada.
note a rosa dos ventos
esculpida no teu peito e
aceite
o que há
: uma constelação nossa reservada
há séculos, por anos-luz
[siga as setas, siga a
água]
Rita Isadora Pessoa nasceu no Rio, em 1984, é graduada em Psicologia e não graduada
em Estudos de Mídia. Estudou a poeta Sylvia Plath no mestrado em Teoria
Psicanalítica (UFRJ) e é atualmente doutoranda em Literatura Comparada (UFF),
onde estuda o duplo em sua modalidade animal. Acredita veemente na inter, na
trans e na indisciplinaridade, mesmo que seu Lattes pareça um livro de Herman Hesse.
Trabalha como tradutora, revisora, astróloga, taróloga, figurinista e
eventualmente é quiromante voluntária para amigos e desconhecidos sem hora
marcada. Seu primeiro livro de poesia a
vida nos vulcões será lançado no final de agosto de 2016 pela Editora Oito
e Meio.
Estou verdadeiramente estonteada com a poesia de Rita Isadora Pessoa, mas cheguei aqui através da fulguração de uns poemas de Danielle Magalhães. Hoje ganhei o dia neste início de 2017, com a força e absoluta beleza da vossa poesia. Obrigada!!!
ResponderExcluirQue alegria ler tua mensagem, Cristina! Os poemas da Rita fervem de vida mesmo. E o presente é só meu por você ter chegado aqui através da fulguração de uns versos que arrisco. :) A oceânica vai voltar com força. Continue por perto! Um beijo!
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