terça-feira, 2 de maio de 2017

Luanna Belmont




Ilustração: Adara Sánchez Anguiano




questão de gênero


tremo de pensar
que me querem definir
                  pelo meu desejo
que me desejam - isso sim -
                  concretar
entre muros altos onde possam
                  não me nomear no fundo
                  não a mim que lampejo
mas nomear através de mim tudo
                  que em mim não está
                  que em mim não é
posto que é justamente busca
            tenso lençol em que me perco
nomear cunhar gozar antes de mim
                   o meu desejo


querem com a ordem do nome
signo macho sombra fêmea
ordenar-me por inteiro
possuir
                 aquele aquela que em mim
come a mim mesma
                 comprimir-me a fenda
por onde escapa a outra fenda
que tem por nome desejo
essa dura parte de mim que
                  não sinto
                  não ouço
                  não toco
                  não vejo


querem comer com este gênero nominal
                meu general e seu pau
                minha rainha e sua bainha
querem comer assim
                o cu das minhas hipóteses
                esta parte oca de mim
                este ávido não ser
que se traveste
que se preenche de puro querer
               e mesmo eu querendo muito
                - o que é tanto dom
                quanto tormenta -
essa parte de mim
                que não me sou
                só aumenta
bela e lúcida falta
que em mim contemplo
                e sendo o que é
                - falta -
                coisa enorme e lenta
tanto mais ela me salva
                quanto menos me contenta


porque
quando ela se senta no meu colo
                de frente para mim
                pernas abertas
                sobre as minhas
pouco importa o que sou
pouco importa a penetração
                em mim
do que fui até ali
                para os outros


porque
quando a pele branca dela
                o seu cabelo colorido
roçam de verdume claro
                e paralisante
                a pele minha
pouco importa o trânsito
que do lado de dentro aborta
ou grita
                minhas concomitâncias


porque
quando me sento sobre ele
                não sou mais:
                desejo a morte oculta
                de mim
                de tudo o que é
a morte subitamente instalada
                nos seus braços
                no seu caralho
vaguidão suprema no meu peito
                no seu olho que transpira
                libélulas vórtices valises


quando ela se senta
quero ser ela e ele
               não sou mulher
               nem homem
sou voyeur
sou cálice
sou presença
      evocada
                de toda coisa
                que de mim me ausenta


xxx



exopoema


preciso dessas cascas 
preciso de pele, muita pele
sob meus pés
meu corpo sabe
e produz em mim solas áridas duras
ressecamentos providenciais embora doam
imagine sem eles


tenho vedações escamas
que às vezes ulceram
por mais que eu lamba as feridas 
e as traga sempre limpas
cutículas extras sobrepostas
que não devo sulcar por máxima prudência 
e economia de tempo desperdiçado 
ou de arranjos sintéticos caríssimos
e ineficazes


e por mais que a moça que cuida
com certeza e vocação
dos meus pés dentre outros mais amenos 
por mais que ela desbaste limpe raspe massageie
e aconselhe hidratação e esfoliação diárias 
não tem jeito não tem dolo
nasce mais pele mais fibra
mais placenta 
mais camadas de mim
sobre mim
para revestir o feto que sou


coitada
ela não sabe o que está falando 
ela não tem a menor ideia 
do que meus pés já tocaram 
quando ela os toca suavemente com as mãos boas e curativas 
não sabe do meu enorme pudor de existir
quando me afina impunemente o couro possível 


preciso dele
que nunca o ácido do lume da roda 
que gira rápido demais todos os dias
toque minha superfície
descoberta
preciso de pele carapaça espinhos 
camuflagem orgânica semelhante ao diamante
gelo que nunca derreta vestindo minhas angústias
fogo implacável cobrindo minha infância iminente
e eterna


jamais poderia ser uma planta carnívora
à espera do alimento
com as entranhas abertas
jamais poderia ser uma vitória-régia
existindo sobre a pele da água
senão um ser das profundezas de mim
dos abismos dos mares
ou da estratosfera sem céu
- abraçado pelo escuro -


preciso untar meu corpo
até que ele inteiro seja um revestimento monolítico
uma noz
um pacto 
um cacto
preciso de todas as preposições anteriores superiores e infra
dos sufixos extensos resguardando minhas raízes úmidas
preciso da roupa mais pesada para o inverno constante
de ter nascido


necessito do capacete das luvas nos punhos dos olhos
do dedal no peito da ponta dos dedos
necessito da joelheira do protetor de seios para mulheres que lutam
enquanto dormem
necessito antecipadamente do protetor de dentes e de queixo
para jugular 
tenho um estoque de capacetes de futebol americano 
no armário
embora às vezes precise eu mesma ficar lá dentro 


necessito de terra sobre meu corpo que meu próprio corpo gera
para me cobrir contra o laço 
contra o sonho
contra a fera desembestada 
para me cobrir de micro-organismos 
que se alimentem dos meus restos
das minhas mágoas apodrecidas
do produto sério da minha vida 
guardado na língua 
que se fartem do mau cheiro dos meus ideais 
quando mofam
preciso da flora que também por dentro
me proteja de mim


preciso me banhar de lama
preciso de um abraço 
de um unguento
feito de sal
e grama


preciso de um poema por hora
pra quando o vento bate 
nas partes íntimas da cidade 
onde mora tanta gente 
tanta gente
que minha pele sozinha não cobre
mas sente


xxx



raio X do tórax 


às vezes, numa conversa, nasce um espinho
feito de desamor próprio 
oferecemos um espinho
como quem oferece uma rosa amarela
a melhor parte de nós
feita da pior parte de nós 
às vezes, na melhor parte
de nós, o mundo está fatigado
e precisa ser salvo por um avião de guerra
levando suprimentos
que durarão só até hoje
à noite
e temos que guardar para o dia seguinte
talvez para o próximo milênio
o nosso espinho 
apontado para o coração
guardá-lo sob sucessivas
infinitas camadas
de aviões 
e outras urgências menores



xxx




A cicatriz 
Tenho uma cicatriz
mas para que serve uma cicatriz
senão para ensinar todos
os dias
inóspitos ou claros
leves ou rudes
a arte do esquecimento?

Para que serve olhar
um corte que fechou
(e abriu)
à minha revelia
e saber que sobre ele
não opino nem calo
como gostaria?

Olho a cicatriz no lado esquerdo
do novo corpo
que era liso e claro e insone
e me assusto simplesmente 
com o que não é mais eu
com o que sou enquanto talvez
durma talvez beba talvez sonhe
apenas me assusto
de repente
não com o meu
mas com outro braço de outra gente 
e talvez o traço de mim que restou
sobre o antigo braço somente
com que ainda faço
o que só a mim me pertence

Quando olho 
meu antebraço esquerdo
lembro sempre 
que é preciso saber esquecer
o que sarou
não o que feriu
olvidar apagar reconsiderar
a paisagem
do corpo que por tanto
tempo
foi meu, e eu amei
retratar-se com a paisagem
que mudou porque venceu
o fim que a tudo acomete
que venceu porque 
ao fim não se vence

Olho a cicatriz no antebraço e penso
é preciso esquecer
o que eu era e lembrar
o que eu sou depois 
de cada canção 
quem sabe inventar outras
cicatrizes
pra me salvar e esquecer 
repetidas vezes
como quem desencrava 
uma mágoa de três espinhos
como quem cospe uma história
da glote da memória
como quem cancela uma promessa
de vida ou morte
como quem murcha um suflê
ou apaga uma vela

Quando olho já cerzido
o meu antebraço esquerdo
encaro em verdade o medo nativo 
diagonal dentro do peito
não de lembrar e sim de esquecer
o que só no verso ajeito
do que em mim é ao mesmo tempo
templo e defeito
ferida e mercê
hipérbole e nada

olhando no braço o que fora
ora rasgo ora cura
ora grito ora forra
uma coisa e a outra 
que renova e satura
na feiura do beco
na brancura do nervo
atravesso com um verso
seco
seguido de todos os outros
a cicatriz na pele branca
a última marca desse confronto
a brecha onde o corpo existe
e tudo o mais é real 
feito uma avenida 
um ralo
uma lavanda 


xxx



Lembrança 


Nunca te contei daquele dia
em que morri e 
a moça com o microfone quis me salvar 
perguntando o que eu achava de
fulano e fulana terem morrido.
- Eles morreram? Eu não sabia.
A quem interessaria a opinião de uma morta?
Entendi que não era eu
a morta, para ela.
Estranha maneira de não morrer esta:
respondendo perguntas.
Não foi uma entrevista, foi uma
ressuscitação. Sempre é.
- Mas então você...
E a moça continuou perguntando como
se morrer fosse passar
o anel
cortar              o bife
digitar a senha do cartão.
Morrer é tudo isso, querida.
Não morrer é que arde.



xxx



United Airlines


esta geografia em camadas que se vê
aqui do céu
obriga a que a cada corpo
no espaço
corresponda outro - seu par
completamente solto -
a hipótese duma linha
a interceptá-los na velocidade da luz
lança-os
na massa planetária
quando realizam em nós
pequenas convulsões
- também os objetos convulsionam
apartados nos extremos
da insolúvel distância
que os une -
cosmicamente há nisso
um arbítrio
um súbito abraço
uma pequena lógica
poética
traçada acima das nuvens
algo que cai de uma altitude inespecífica
sobre os corpos lá embaixo
ou deles se ergue até aqui
- corpos são punctos
como o puncto silencioso
do avião no ar -
o avião é tão pequeno tão pequeno
e sob ele
emergem, em campo magnético,
do chão ao céu
do Rio a Houston
- em minha direção -
pequenas magnitudes pontiagudas da vontade
corpos
de si despegados e entre si estranhos
e para si dispostos contra tudo
que os ignora
no escuro alvo concentrado
de suas hipóteses
corpos nos
sonares satélites radares
bólides - quem sabe?
arranhando subterfúgios e rotas
em torno dos meus pulsos
no fundo dos mares



xxx



para aquele que dorme


o que do desejo subverte
o beijo é nada se você diz sim
e se você não diz e beija
o não e beija o que seja
a dor do não e beija e lambe
e molha o não
para que ele enrijeça feito o céu
eu quero eu quero eu quero
e é água e é água o que nos
palavra o que nos beija repleta
espera de esperar respirar a espera
perto da palavra beijo perto do sim
que o corpo faz toda vez que
repetindo a primeira
toda vez repetindo repe-
tindo como se repete o desejado
dentro o desejado lancinando o
corpo precário do que deseja o corpo
que vaga beija diz sim arquejando-se
sobre o próprio desejo
que é um não onde o banjo e
o beijo sobre o próprio beijo
afogado e livre
carregado no espaço o beijo eu
carrego você a sua língua
etérea
em nome do beijo em nome do
meio que me escapa
e nos preenche
em nome do beijo em nome
do abraço sólido que nos demos
antes de nos conhecermos porque
o desejo é sempre antes
primário nome desejo
em nome dos seus em nome de deus
cabelos seus perfumando o ângulo do
meu pescoço antessala do ombro e mais
antes
do sol o ângulo do abraço por onde
eu quereria escalar descalça e branca
até o alto
da sua fronte até o hálito onde
existisse só a linguagem
que ainda não falamos
juntos
a linguagem que nos
socorre quando falta dizer
para tanto corpo
para tanto som
desejo
eu quero eu quero só o beijo por
onde vaze para o meu corpo
o seu maior silêncio
e que no fim você esteja
nu







Luanna Belmont nasceu em 1980 em São Gonçalo, no estado do Rio de Janeiro. Mora em Jacarepaguá desde 2008. E gosta de viver colada ao que resta da floresta. É formada em Comunicação Social pela PUC-Rio, Mestre em Literatura Portuguesa pela UFF, com dissertação sobre Maria Gabriela Llansol, e doutoranda em Ciências da Literatura na UFRJ, onde estuda a poesia de João Cabral de Mello Neto e aspectos da poesia brasileira contemporânea. É professora, redatora, revisora, jornalista, esposa. É dona de casa, dos seus cães, do seu gato e do seu jardim. Mas, às vezes, é o contrário. É poeta, porque assim se conformou viável no mundo: na escrita, no espanto, na insubordinação e no exercício da delicadeza. Tem publicado seus textos na internet, no Facebook. Em 2016, lançou "Sobretudo verde" (megamíni/7Letras). Atualmente organiza seu primeiro livro de poemas.