(ilustração: Bruna Mitrano)
Foi com demora, mas também com atenção que lemos e relemos os muitos poemas enviados para esse post especial, tendo sempre a consciência de estar lidando com um tema profundamente delicado, que precisa – e deve – ser tocado com o máximo de cuidado. E foi nos cercando de cuidados que fizemos essa proposta a autoras mulheres, sem querer, de maneira alguma, causar mais ferimentos a vítimas de abuso; pelo contrário, é por acreditar no poder da poesia que pensamos nela como caminho para o diálogo, como caminho para a visibilidade daquilo que precisa, sim, ser gritado e “regritado”, até que nos ouçam, enfim.
Em maio desse ano,
uma adolescente de 16 anos foi estuprada por 33 homens na periferia do Rio de
Janeiro. O crime, aterrador e inconcebível, não é o primeiro nem o último, e
emerge de uma cultura inteiramente voltada para a construção de uma
mulher-objeto, de uma mulher impossibilitada de reivindicar sua própria voz,
seu próprio corpo, seu próprio estatuto de sujeito. Desde o princípio, a
Oceânica surgiu exatamente com a intenção de ampliar a voz de poetas mulheres,
dando a elas um espaço não tão facilmente encontrado nos usuais círculos de
literatura. Então, é claro que não poderíamos, em hipótese alguma, nos manter
caladas diante de uma agressão vivida por uma mulher que, sendo outra, é, ao
mesmo tempo, todas nós.
E, assim, chegamos, enfim, a essas 21 mulheres, entre outras muitas, essas 21 mulheres com essas 21 vozes, entre outras muitas, ajudando a desdobrar os múltiplos gritos de protesto que temos carregado entalados na garganta. A todas que confiaram seus textos à Oceânica, nosso mais profundo agradecimento! Que as vozes, juntas, possam alcançar mais ouvidos; que a poesia nos mostre (e ela sempre mostra) algum caminho; porque, nós sabemos, os 33 são muito mais que 33, mas também nós somos muitas, somos gigantescas, somos grandiosas, somos oceanicamente imensas quando estamos unidas.
E, assim, chegamos, enfim, a essas 21 mulheres, entre outras muitas, essas 21 mulheres com essas 21 vozes, entre outras muitas, ajudando a desdobrar os múltiplos gritos de protesto que temos carregado entalados na garganta. A todas que confiaram seus textos à Oceânica, nosso mais profundo agradecimento! Que as vozes, juntas, possam alcançar mais ouvidos; que a poesia nos mostre (e ela sempre mostra) algum caminho; porque, nós sabemos, os 33 são muito mais que 33, mas também nós somos muitas, somos gigantescas, somos grandiosas, somos oceanicamente imensas quando estamos unidas.
sem título
(Mary
Prieto)
O que resta
da poesia
quando a
banalidade se levanta
quando a
bestialidade se
agiganta e
se impõe?
O que resta
da poesia?
precisei de
30 segundos para
pensar.
mais 30. Um
minuto de silêncio.
E quantos de
respeito?
O que resta
da poesia?
faz ainda
algum sentido essa
pergunta?
estamos
todos inconscientes do
seu eco,
que dirá da
sua resposta!
O que resta,
sem poesia?
destacar a
ausência fará
diferença
diante do
que se repete todo dia?
Rastros de
corpo sem voz
de corpo sem
luz
de
corpos-pós.
pós-signo
e
significados.
Poesia é
toda a beleza
que
luta
pra não se
deixar calar:
...
a
poesia
é uma
mulher
que grita
ainda!
...
Apesar de 3
ou 30.
xxx
ferida
(Carla Carbatti)
(Carla Carbatti)
quantas pássaras e placentas
podem ser mutiladas com 33 machados?
podem ser mutiladas com 33 machados?
há uma enorme ferida
que atravessa os séculos e o meu sexo
minha ternura é escassa
desnuda
que atravessa os séculos e o meu sexo
minha ternura é escassa
desnuda
meus lábios se ferem da violência
das palavras que não se diz
das palavras que se diz
sem silêncio
das palavras que não se diz
das palavras que se diz
sem silêncio
quando choro
bailam comigo as sombras de todas as mulheres
que sofreram e sofrem a dor do seu próprio corpo:
carne em terremoto: pulsações intraduzíveis
bailam comigo as sombras de todas as mulheres
que sofreram e sofrem a dor do seu próprio corpo:
carne em terremoto: pulsações intraduzíveis
uma enorme ferida
atravessa os séculos e o meu sexo
brecha na noite: abismo
onde vaga uma música sem asas
[aprisionada]
atravessa os séculos e o meu sexo
brecha na noite: abismo
onde vaga uma música sem asas
[aprisionada]
xxx
Ruth
(Juliana Hollanda D'Avila)
30 e tantos
um campo vasto de destroços
até onde alcança
levanta o braço para apontar as
ruínas atrás de si
pesadelo terrível
fico tentando acordar
perdi nossa cidade toda
o cenário de devastação
é insuportável
a parede de água preta e
destroços
a casa veio abaixo em segundos
o teto desmoronou
xxx
Estupro
de voz
(Victória Versari)
Afastem de nós esse cale-se
de padrões que obrigam disputa,
de mãos sujas em nossas bocas,
de assédios assustadores.
Essa palavra presa na garganta,
engasgada, oprime nossa luta.
Melhor seria botá-la pra fora,
cuspir a verdade na cara da rua.
Mesmo calada a boca, resta o verso,
que denuncia, solta e arranha.
Quero escrever problema, o reverso.
Já nos cansamos de sermos “puta".
Que esse grito desumano nos salve.
A saia é causa, é convite pagão.
O patriarcado usa tampão de orelha.
Silêncio nos becos não se escuta.
xxx
Este não é um vídeo
é
um poema sobre os homens
onde
eles não aparecem
(Luanna Belmont)
A menina é usuária de drogas.
A menina foi mãe adolescente,
tem um filhinho de 3 anos.
A menina frequenta o baile da
comunidade desde os 13 anos.
A menina às vezes some por dias.
A menina teria aceitado fazer
sexo consensual.
A menina é pobre.
A menina foi estuprada por 33.
A menina foi estuprada por 33.
A menina foi estuprada por 33.
A menina foi estuprada por 33.
A menina foi estuprada por 33.
A menina foi estuprada por 33.
A menina foi estuprada por 33.
A menina foi estuprada por 33.
A menina foi estuprada por 33.
A menina foi estuprada por 33.
A menina foi estuprada por 33.
A menina foi estuprada por 33.
A menina foi estuprada por 33.
A menina foi estuprada por 33.
A menina foi estuprada por 33.
A menina foi estuprada por 33.
A menina foi estuprada por 33.
A menina foi estuprada por 33.
A menina foi estuprada por 33.
A menina foi estuprada por 33.
A menina foi estuprada por 33.
A menina foi estuprada por 33.
A menina foi estuprada por 33.
A menina foi estuprada por 33.
A menina foi estuprada por 33.
A menina foi estuprada por 33.
A menina foi estuprada por 33.
A menina foi estuprada por 33.
A menina foi estuprada por 33.
A menina foi estuprada por 33.
A menina foi estuprada por 33.
A menina foi estuprada por 33.
A menina foi estuprada por 33.
mas a menina é usuária de
drogas
é mãe adolescente frequenta o
baile desde os 13 some dias
aceitou fazer sexo
A menina foi estuprada por 33.
A menina foi estuprada por 33.
A menina foi estuprada por 33.
A menina foi estuprada por 33.
A menina foi estuprada por 33.
A menina foi estuprada por 33.
acontece que
menina drogas mãe baile sexo
estuprada por 33.
estuprada por 33.
estuprada por 33.
veja bem
menina sexo
estuprada estuprada estuprada
estuprada estuprada estuprada
sexo menina
33 33 33 33 33 33 33 33 33 33
33 33 33 33 33 33 33 33 33 33
menina
ela
a
xxx
Tabu
(Deborah Prates)
É difícil falar sobre estupro
mais ainda, comentar sobre O
estupro
pior é amargar o silêncio sobre
aquele estupro
Eu não preciso citar nomes
personagens cenários
link da matéria
vídeo foto ou depoimento
de quem atendeu a vítima
porque ainda assim
você vai saber sobre
o que eu estou falando
precisamos falar sobre estupro
mais ainda: discutir sobre O
estupro enquanto uma vítima amarga
silêncio
todas as outras mulheres comungam a dor
não importa se usa
saia jeans moletom batom
descabelada
idade cor local religião
com ou sem
família trabalho história sonhos
tipo físico? não importa
tem buraco?
os dois servem
precisamos falar sobre estupro
lutar contra palavra e tempo verbal
"se", "suposto", "teria
sido
estuprada"
poderia ter sido eu você
sua mulher mãe irmã filha tia
somos todas forçadas a
engolir a seco tragédias diárias
machismo apertando a garganta
e
empurrando injustiça goela
abaixo
vítimas de ontem, de hoje, de
amanhã
só pelo fato de ser mulher
somos violentadas no parto
culpabilizadas a priori
julgadas ad infinitum
amordaçadas dopadas
desfiguradas
legitimadamente desgraçadas
desacreditadas
todos os dias
somos Ela
xxx
Estupro
coletivo
(Mariana Imbelloni)
Encurva a coluna
Esconde esse peito
Também com essa bunda
Ainda quer respeito
Traiu o marido?
Ó o tamanho do vestido.
Se estivesse em casa...
No caso, qual casa?
A do "Ô lá em casa"
Ou do assédio do padrasto?
Tudo é nefasto quando contado
Revolta on line contra os
monstros tarados
Mas que ninguém mencione seu
estupro domesticado
Seu convite ameaça
Seu toque onde não foi chamado
Sua piada sem graça armada
contra meu corpo exausto
Calado, você é trinta
Seu riso é a sentença do meu
fado
Sua conivência me violenta ao
cadafalso
(Mas meu grito não se encerra
nesse quarto
Contra o claustro da tua cultura
inculta
Somos muitas)
xxx
etimologia
do cálculo homem
(Carla Diacov)
homem
diga 33
33 homens
por que deveria dizer
são ordens clínicas
homem gentil que pensa e faz gentilezas
gentil cheiroso cheirando a cuidados
perene fibrosa vigilância
a jerarquia tende o ambiente
quanto mais disser o 33 mais ambiente temos
o número garante a soma o ímã a irmandade
o som localiza o ponto pervertido
o terceiro olho
lasso perrengue tartamudo
bem no meio da tua barriga
homem
diga
por que dizer
são ordens táticas
é um bom mantra
funciona há milênios
diga
homem
diga HOMENS
diga um poço de tanto homem
diga cabe ao homem
diga túnel inaugura precária hombridade
diga
é preciso o concreto atochado na palavra homem
diga subterrâneo mas não diga homem
33
diga glória interminável que nem coração de mãe
diga minha mãe e minha irmã trem bala prefeitura
inaugura
diga tudo junto sem te engasgar
são ordens da pacificação
dizem
diga minha filha e minha sogra e minha avó
diga minha família é meu tesouro túnel inaugurado
diga meu abdômen é minha amante minha mão minha
questão
questão de honra ser por que não dizer
diga 33 e diga homem
sou um homem com homens que me douram homem
tenho uma pistola e amigos que provam minhas
reincidências homem
tenho O cara na causa
tenho O cara nas calças
diga mais da avareza no que diz
não são ordens são fotografias
são estátuas e são poses no que diz
diga
minha vida de homem agora é monumento ao homem
homem
o trigésimo quarto
num brasão bonito tetudo bronzeado
perigoso bandidão e de shortinho pega-ladrão
diga
para convencer maçãs e bananas
diga tudo e diga
33
o trigésimo quarto
por ordens do patriarcado no espelho pós barba
diga
sou o trigésimo quarto
faça uma piada com isso
dê um beijo na pistola
ganhe outro da mamãe mais um da filhota
e vá para a repartição mundo
que tanto te diz homem
digo
o trigésimo quarto
xxx
sem
título
(Bruna Mitrano)
eu deitada em
desmanche e você de pé, distante, cabeça curvada triplicando o queixo, um
embaço e eu não reconheceria, não fossem as pernas abertas, os pés roçando meu
quadril, seu pau ao centro tomando proporções desmesuradas, um pau maior que o
corpo, maior que eu, que sangro e sangro muito, e meu sangue é vivo porque é sangue
de quem se aborta, é sangue de quem implodiu e é arrancada a fórceps, eu que
por precaução não desvio os olhos do seu pau, um deus que impele a ser tocado
com terror mas, se não me restam mãos, olho, você se masturba com ódio de si,
eu quero fechar os olhos pra não amar o seu ódio de si, consegue enxergar meu
asco agora? sua cara de domingo cozinhando arroz integral, se eu dissesse que existir tem
sido insuportável, me mataria? você diz que foram minhas somente minhas
alucinações, mas já não acredito na verdade do seu corpo e por isso não deixo
de te olhar com olhos enormes, apavorados, olhos que não posso fechar, olhões
você disse tão grandes, menores que esse medo que arrebenta a carne em gritos,
gritos que não chegarão até você, de pé, distante, como um deus ou tormenta.
xxx
leilão
(Norma de Souza Lopes)
desacelere seus passos
apoie-se no balcão
tome uma cerveja
ouça o pregão
do outro lado da sinuca
um delegado e uma avó
trocam apertos de mão
nove anos
virgindade arrematada
por cinquenta reais
a menina assiste
estática, só a assusta
o próximo leilão
a irmã de seis anos
brinca sozinha em casa
xxx
sem
título
(Sofia Glória)
O vermelho escorre pelas pernas
Com as unhas, rasgo o peito e exponho um coração
que
sangra, esfolado.
A pétala pende
-
Não quero ser silenciada por mãos indignas do meu toque
Correntes pesam as duas mãos
exaustas e nuas, fartas do combate
e espinhos.
O grito contido se esparrama e alastra o
fel
a dor
o asco
E tinge de sangue a terra.
o batom vermelho da boca seca
- Quero um grito que arranhe a garganta
e faça vibrar a hipocrisia desse silêncio amargo
que adormece a língua
espinhos de horror percorrem
- aos montes -
seu corpo
(dentes rangem)
a lágrima vermelha desce
e rasgam cada milímetro de pele que
resta
esgotam a sensação de dor até o ponto
de não sentir
senão
o desamparo
do nada
quebrado.
- Quero um útero com fôlego de pulmão
e força de um braço
Suas mãos,
pensas,
limpas pelo seu sangue, que ainda jorra
Ele escorre e encontra a minha pena
que seguramente seguro com tantas mãos de luta e
luto:
Escrevo até sangrar
O papel suga, sangra, se tinge
a pintura dança, sangra, grita.
Escrevo
Reescrevo a dança
Reinvento a escrita
Apago
Singro o sangue ao branco
Aquarela coral, luz escorre
Até tornar-se
Vermelho-sangue.
xxx
Trinta vezes
(Ana Farrah Baunilha)
Trinta vezes
eu fui o choro contido
na minha
cara de passarinho machucado
eu era toda ouvidos e boca fechada pro abusador
saco de pancada do psicopata
refúgio do esquizofrênico
eu era o último recurso
o sopro boca-a-boca no afogado
o rivotril dos insones
eu era vaga de estacionar
o lugar pra onde eles corriam
a gruta de acolher leprosos
o beco de esconder casqueiros
Eu costumava ser inteira pra eles virem desmoronar
eu era uma beira do cais um desterro
lugar de desmanche, descarrego, um cemitério
meu corpo de ferro velho,
ruína.
Virei patrimônio local tombado
por uso e descarte
lugar de despacho
esteira de rodar bagagem
Eu era toda em peças de encaixe,
desmontadinha dentro da caixa
pronta pra ser jogo na vida
Virei foi destroço num quarto de bagunça
as partes pisadas de uma boneca velha
despedaçada e fora de moda
eu era toda ouvidos e boca fechada pro abusador
saco de pancada do psicopata
refúgio do esquizofrênico
eu era o último recurso
o sopro boca-a-boca no afogado
o rivotril dos insones
eu era vaga de estacionar
o lugar pra onde eles corriam
a gruta de acolher leprosos
o beco de esconder casqueiros
Eu costumava ser inteira pra eles virem desmoronar
eu era uma beira do cais um desterro
lugar de desmanche, descarrego, um cemitério
meu corpo de ferro velho,
ruína.
Virei patrimônio local tombado
por uso e descarte
lugar de despacho
esteira de rodar bagagem
Eu era toda em peças de encaixe,
desmontadinha dentro da caixa
pronta pra ser jogo na vida
Virei foi destroço num quarto de bagunça
as partes pisadas de uma boneca velha
despedaçada e fora de moda
xxx
sem título
(Camila
Passatuto)
Quando abri a boca para gritar
contra injúrias e crimes, eles
lançaram coquetéis de calmantes
garganta abaixo. Ao questionar
toda violência depositada em
nosso corpo, injetaram mais
calmaria em minhas veias.
Sinta a razão adentrar. Senhora
Sinta a razão adentrar. Senhora
das podridões absolutas.
Se acaso levantar o olhar para
Se acaso levantar o olhar para
questionamentos, irão surrar tua
língua, cortar teus seios e
apresentar teu cid abrangente, f20
ao f29.
- Preencha os formulários
- Preencha os formulários
corretamente, a unidade está
lotada, mas leito para uma puta...
sempre tem, aliás, como você é
bonita.
Toda vez que uma mulher aparece
Toda vez que uma mulher aparece
na janela, aqui no topo do mundo,
eles rosnam, acariciam suas
pedras e aprontam suas fogueiras.
Sempre somos a mira.
Quando você abre a boca,
Sempre somos a mira.
Quando você abre a boca,
menina, toda sociedade te
analisa. Sabia? Antes da fala, eles
dão a posologia.
Mais calmantes, mais calmantes.
Antes que essa mulher se levante
Mais calmantes, mais calmantes.
Antes que essa mulher se levante
e fale sobre misoginia. Porra, mais
calmantes.
Invalidaram nossa fala, nos
Invalidaram nossa fala, nos
mataram, apagaram dos textos
nossa real escrita.
Podem trazer a camisa de força,
Podem trazer a camisa de força,
mas saibam que lá fora há uma
legião de tesouras portadas por
loucas, que cortam as amarras
minhas.
Mais calmantes.
Até mais uma se calar, por força
Mais calmantes.
Até mais uma se calar, por força
bruta de uma sociedade machista.
Hoje o texto não é poesia.
Odeio rima. Então, escarra...Limpa
Hoje o texto não é poesia.
Odeio rima. Então, escarra...Limpa
dos lábios o resto de saliva que o
escândalo depositou, só por
revelia. Limpa.
Hoje é grito sem estrutura e sem
Hoje é grito sem estrutura e sem
premissa.
Alinha minha escrita, se quiser...
Alinha minha escrita, se quiser...
Se for mulher.
Caso contrário. Não fode.
Caso contrário. Não fode.
xxx
sem
título
(Priscila Merizzio)
fui uma guria tão crédula na
candura alheia
o tio me punha em seu colo,
balançava meus fêmures
a calcinha de bichinhos trepidava
na espinheira-santa
no terreno baldio de sua virilha
em troca de carinhos lúdicos
mensalmente ele pagava
cestas básicas aos pais pobres
no fundo das igrejas
os eflúvios de mênstruos
adiantava-se na biografia
de outras pequenas
xxx
trinta e
cinco dólares
(Lubi Prates)
um corpo que
estabelece o
limite
com o outro
ser
um corpo que
é membrana e
ampara
a
personalidade
um corpo que
guarda os
escapes
da mente
assim como
o contrário:
tudo que
acontece
no corpo
chega
às camadas
psicológicas.
como pensar
um corpo
que é tocado
dominado
invadido
destruído:
é saber o
corpo
de uma
mulher:
mutilado
estuprado
vendido
na África,
todo
clitóris
é cortado
para que
nenhuma
mulher
sinta
prazer.
na África,
também
as meninas
ainda meninas
apertam seus
seios
para que
pareçam
meninos e
não sejam
invadidas.
como pensar
um corpo
como saber o
corpo
de uma
mulher:
no Brasil,
trinta e
três
homens
estupraram
uma mulher.
ainda, no
Brasil, a cada
onze minutos
uma mulher
é estuprada
mas não
fala-se
a respeito
parece
natural.
como pensar
um corpo
como saber o
corpo
de uma
mulher:
a cada ano,
dois milhões
de mulheres
são vendidas
cada mulher
custa
trinta e
cinco
dólares.
eu não estou
à venda mas
o que eu
custo:
trinta e
cinco
dólares.
como pensar
um corpo
como saber o
corpo
de uma
mulher:
apenas
carne.
xxx
sem título
(Priscilla
Brito)
Fomos
violentadas 35 vezes.
30 homens, a
morte pelo trabalho
um tiroteio,
casos de câncer
e outra
doença no prontuário.
Pros nossos
filhos, tiros
Pras nossas
mães, descrença
Promessas
não sobrevivem às
filas de
hospital
à espera na
fila dos ônibus
incediados.
Na Tv falam
de outras formas de
vida
talvez
porque não damos conta dessa.
As lágrimas
não são notas no
rodapé das
teses
Os gritos
não são audíveis nos
jornais de
domingo.
Sobram
desesperos
No escândalo
dos silêncios.
xxx
Via profundis: um anti-relicário
(Mariana
Basílio)
“Entre a verdade e os infernos
Dez passos de claridade
Dez passos de escuridão. ”
Hilda Hilst
Era a
carnagem do sol
Sob os
nossos pés.
Era a
fressura da lua
Sobre os
nossos ombros.
Quando o
chão se abria
em pedaços
de chuva.
O porém era
portanto,
No
desencanto que abraçavas.
Em tremores
de vias sanguíneas.
Tu. Ave maior. Entre olhos.
Queimada de luz. Em nossa
voz.
No chumbo
ardil do Tempo.
Partido
rosário de estrelas.
A suportar o
impossível,
Dormias na
fluidez do
Tempo. Nos
sinais que
Cobriam o
silêncio.
Dormias. E sob o teu
Sono havia
um anjo.
Em anises
arrozais.
Na cadência
futura.
Sobre tua face.
xxx
sem título
Ana Horta
“Leite negro
da madrugada bebemo-lo ao entardecer
bebemo-lo ao meio dia e pela manhã bebemo-lo de
noite
bebemos bebemos”
Paul Celan
Temos um
rinoceronte preso ao pulso,
grunhindo
palavras atrozes e ininteligíveis.
Mergulha no
lodo e dele traz
raízes
podres de sentenças desumanas.
Às vezes
canta uma litania absurda,
trauteando a
cacofonia do medo feita lei.
Depois, os
carrascos desenrolam o novelo
incapaz de
tecer, avesso à vida.
O novelo
estéril do poder.
E prendem
teus cabelos loiros, Maria
Teus dedos
finos, Mariana
Tua voz
suave, Isabel
Teus sonhos
doces, Margarida
Teus pés de
guerreira, Teresa
Teus filhos
lindos, Joana
Tua boca
canora, Juliana
Teus seios
cheios, Madalena
Teu corpo só
teu, Inês
Tuas pernas
caminhadas, Matilde
Teu rosto
tão belo, Sara
Teus quadris
de dança, Graça
Teus joelhos
redondos, Natália
Teus
caracóis negros, Rita
Teus ombros
suados, Elsa
Teus olhos
brilhantes, Raquel
E tomam teu
ventre só teu, Irmã.
A coruja
solta-se na noite branca
e voa
percorrendo a terra toda
com seu piar
de desgosto.
Haverá
palavras? Há alguma palavra?
Há. Muitas.
Todas.
O grito da
Terra inteira em fúria!
xxx
Estupro
(Isadora
Barretto)
A violência
tem dessas coisas,
bruta, pura,
radical, invade com a
força de
liquidar palavra. Real,
inelaborável,
parte incapaz de
dizer. Por
ora, o 30-número virou
coisa. Os
trinta abstratos repente
tomaram
forma, e os vejo
fantasmagóricos
em tudo o que
apontam os
olhos, mesmo nas
paredes
brancas e inócuas, na
água que
bebo, na quietude de
minha casa
sem homens, agás
maiúsculos
ou minúsculos. Os
vejo no
espelho do meu
banheiro, e
olham-me,
invadem-me e
me possuem. Sou
eu mesma,
são todos os outros,
um ser
total. Oco, completo,
pleno. A
coisa me olha e me
silencia,
enquanto gesto único
que posso -
não-poder -, sinto.
Animal.
Estupefata, estúpida, estúprida.
xxx
sem saber dizer,
(Nina Rizzi)
olho a
sarjeta mais suja
qualquer um
podia saber que não há menina
nesse chão
sem ter sido um rastro de violência
olho a
sarjeta mais suja
e sei que
não posso voltar a pisá-la
dormir sob
dejetos, restos de obras e cimento
a menina
pisada é ainda outra e outra
a menina
quem poderá dizer se nunca mais sair
da sala de
psicopatologia – isto que é
chama,
pedra, mãos, iml
é fraco
dizer alguém
é fraco
dizer animal
é tão fraco
dizer os rasgos de toda história
2.
uma sarjeta
é o lugar onde se deixar uma menina
uma menina é
um ser vivente, um ser vivente é
esse que se
atravessa e mata e nunca existiu
não vou mais
pisar a sarjeta de quando era uma menina
sob as mãos
do pai, do outro e do outro
todo e
qualquer desconhecido
um senhor me
pergunta se foi um poema que se salvou
como sede de
qualquer morada
o claustro,
senhor, não pisar qualquer chão
ser
encarcerada é um ótimo ataque, lê-se numa vala
3.
a rua lá de
casa é um aguaceiro pronto
a pisar,
cair, uma abertura pra o fim do mundo
o fim do
mundo acontece
cinco vezes
por hora a cada onze minutos
é quando um
ser vivente se converte em menina na sarjeta
sob as mãos
de um, qualquer um ou trinta que é mais que gente
mais que
gente não é um monstro
um monstro é
mito ou é beleza
não existe
beleza quando uma menina está na sarjeta
eu nunca
mais vou à sarjeta, mas olha:
está cheia a
sarjeta de outras meninas
eu sou ainda
outra, uma menina que não pode ser mais
atravessamento-
violência-- fim---
xxx
Medo mulher
(Ana
Thomazini)
Nascer
mulher é ter fato, construção e procuração de permissão do medo.
Permissão
medo que o corpo seja esburacado, invadido, mutilado, abandonado, quebrado,
dilacerado, medido, carcomido os olhos, que as mãos se enruguem em pavor e
velhice precoce, permissão de ser morta, permissão de ser casulo de puta
abandonada, permissão de ter instituição para consolidar o controle fúnebre de
tua vagina, saturnino peso sobre o sistema corpo, sobre teu sistema nome, sobre
teu atributo de gênero feminino. A carne, a bruxa, a terra, o medonho, é mulher
medo.
Que os
punhos se ergam em luta solitária, de mulher em queda, de mulher em exílio, de
mulher casta silenciada por manto sagrado, por fogueira, por medo do
estrangeiro que habita em útero fendido, arrebentado, explorado feito caverna
medo mítica, medo mística, medo mausoléu envidraçado.
Que os
punhos se ergam e sejam os olhos revirados na terra dos dias, mulher que morde
a mordaça, mulher castigada, mulher do feche as pernas e porte-se como deve ser
mulher submissa, mulher assombrada, mulher virgem, mas puta na cama, mulher
maquiada, montada, salto agulha, mulher sensual, sempre jovem, mulher Lolita,
mulher novinha, mulher unhas vermelhas, mas o batom, vulgar essa cor, vadia. A
mulher morde a coronha fria do pavor por descuido de existir.
Cale a boca,
expurgo teu útero, teu sexo é praça pública, tua saliva, teu sangue, teu suor
sempre valem menos, tua carne é pouca para 30 bocas que te carcomem dignidade,
pulso, vida, história, futuro, passado, esperanças, medos. A mulher sobreviveu,
a mulher teve 30 vezes a vida exumada, espumada entre rochas afiadas pelo medo.
Mulher feito cadáver trôpego, feito pacote bêbado. Mulher não é gente não,
mulher é elemento traiçoeiro. A mulher pecadora sobreviveu, encheu-se por 30
covas, conspurcada por 30 vermes. Mulher vertigem não viu 30 rostos, 30 rostos
de punhal na vagina, útero apodrecido por 30 horrores machos.
Útero doa a via ao caminho da morte, o terror que purifica
teu nome, mulher, é divino e feito de sangue. Ergo punhos em luta plena de
nomes, em guerra cheia de ódio, mulher medo, minhas unhas perfuram os caminhos
de placentas, seios e sorrisos opacos, sem manhã de sol, mulher é criança
profanada no mistério dos 30 cacos, mulher é objeto emudecido que carrega o
universo entre as pernas, mulher que em hemisférios hemorrágicos perfura a
lógica 30 vezes, o demônio possui teu corpo em 30 formas de desalinho, o
desafinado medo mulher, o apagado escuro de 30 violações. Mulher de 30 corpos
violentos, de 30 nomes que gargalham teu nome, corpo, medo.
Maravilhosos poemas, retrata bem um pouco da realidade feminina.
ResponderExcluir