quinta-feira, 8 de junho de 2017

Lubi Prates










































Ilustração: Bruna Mitrano





ser mulher é uma bênção
ser mulher é poder gerar & poder parir
ser mulher é ter buceta, dois seios, uma bunda grande

ser mulher é
ser loira, olhos claros, nunca descabelar-se
é ter sangue escorrendo entre as pernas & não deixar que percebam mesmo que

você corra
você nade
você dance

ser mulher é uma bênção
e desde a Bíblia é ser apedrejada queimada morta
uma contradição

eu descobri agora que
não sou mulher

estou viva
nunca queimada
nunca apedrejada

eu descobri agora que
não sou mulher

sou negra, sou apenas uma negra

e o sangue que vem do meu ventre
permito que seja rio
que volte pra terra e

corro
nado
danço

descabelo-me

eu descobri agora que
não sou mulher

eu tenho pinto
apenas um seio
quadril estreito

nunca pari

eu descobri agora que
não sou mulher

ser mulher é uma bênção.



xxx



para este país


para este país
eu traria

os documentos que me tornam gente
os documentos que comprovam: eu existo
parece bobagem, mas aqui
eu ainda não tenho esta certeza: existo.

para este país
eu traria

meu diploma os livros que eu li
minha caixa de fotografias
meus aparelhos eletrônicos
minhas melhores calcinhas

para este país
eu traria
meu corpo

para este país
eu traria todas essas coisas
& mais, mas

não me permitiram malas

: o espaço era pequeno demais

aquele navio poderia afundar
aquele avião poderia partir-se

com o peso que tem uma vida.

para este país
eu trouxe

a cor da minha pele
meu cabelo crespo
meu idioma           materno
minhas comidas preferidas
na memória da minha língua

para este país
eu trouxe

meus orixás
sobre a minha cabeça
toda minha árvore genealógica
antepassados, as raízes

para este país
eu trouxe todas essas coisas
& mais

: ninguém notou,
mas minha mala pesa tanto.



xxx



condição: imigrante


1.

desde que cheguei
um cão me segue

&

mesmo que haja quilômetros
mesmo que haja obstáculos

entre nós

sinto seu hálito quente
no meu pescoço.

desde que cheguei
um cão me segue

&

não me deixa
frequentar os lugares badalados

não me deixa
usar um dialeto diferente do que há aqui
        guardei minhas gírias no fundo da mala
ele rosna.

desde que cheguei
um cão me segue

&

esse cão, eu apelidei de
imigração.


2.

um país que te rosna
uma cidade que te rosna
ruas que te rosnam:

como um cão selvagem

esqueça aquela ideia
infantil aquela lembrança
infantil

de sua mão afagando um cão
de sua mão afagando

seu próprio cão

ficou em outro país
ironicamente, porque a raiva lá
não é controlada

aqui, tampouco:

um país que te rosna
uma cidade que te rosna
ruas que te rosnam:

como um cão

: selvagem.




xxx



não temos fronteiras

você diz
não temos fronteiras

você diz
não temos fronteiras
para dizer que somos um, que
a pele do outro ainda é si, nós
o mesmo chão.


você diz
não temos fronteiras
para me enganar, pergunto.

você diz
não temos fronteiras
eu nego
forçando o meu olhar nas
cicatrizes que insistem
limites tão leves, mas que
se fôssemos em mapas
            se fôssemos países ainda
estariam lá, ainda
ensaiariam abismos
mínimos.


você repete
não temos fronteiras
porque para você
essas linhas são
apenas

detalhes

dentro de poemas.


xxx


há uma arquitetura
no corpo

o encaixe de um tijolo
que facilita
e ou
dificulta.


há uma arquitetura
no corpo

que edifica mas
me desaba


uma
arquitetura
no
corpo

dizem: sábia

embora não explique
esse peso nos meus pés
que prevejo desabamentos

embora não explique
esse vazio no meu tórax:
impreenchível


qual ciência determinou que
minhas mãos não
demorariam ao segurar?

há uma arquitetura
no corpo

dizem: sábia

em mim:
inexata.


xxx


talvez

você tenha aprendido a
amar
com os gatos

ainda recém-nascido foi resgatado,
pergunto.


talvez

você tenha aprendido a
andar
com os gatos

talvez

você tenha aprendido a
se comunicar
com os gatos

aquela integração em:
voz corpo personalidade,

você domina

a prática em
não permanecer.


talvez

você tenha aprendido a
amar
com os gatos

mas eu

eu faço parte daquele time
que não entende
gatografia.


xxx


a partir de uma nota crítica

l.,
queria rir contigo
das frases exageradas
de c.
sobre os poetas que somos
            você eu & tantos outros
nesses anos dois mil

tantas propostas sobre
o que devemos ser fazer

onde
então
esconder a espontaneidade

c. não nos diz.


l., se
te previssem como
seria ser poeta neste século xxi

você ainda aceitaria
você ainda escolheria
ser poeta?

como adília já perguntou
se ainda escrevêssemos em peles de bezerros recém-nascidos,
você se atreveria a sacrificar estes animais?

l., hoje
pensei em te ligar
            estados de distância entre nós, mas
preferi relembrar
os seus silêncios e
imitá-los
preferi relembrar
a sua confissão
não curto ana c.
diante da minha cara amarga

como eu quis te odiar
naqueles segundos


depois, ainda
vários questionamentos sobre
as classificações de poesia
            apenas para deixar tudo organizado:

círculos com círculos
mantermo-nos sempre entre iguais:


por que é só dessa forma que
            as coisas podem existir?


l.,
você já pensou como
c. nos responderia

essa questão?









Lubi Prates nasceu em 86, em São Paulo. É graduada em Psicologia e está se especializando em Psicoterapia Reichiana. Tem publicado o livro coração na boca (Editora Multifoco, 2012, republicado pela Patuá, 2016) e triz (Patuá, 2016) e algumas participações em revistas e antologias literárias nacionais e internacionais. Edita a revista literária Parênteses, é tradutora e dedica-se, principalmente, a ações que combatem a invisibilidade da mulher e da negritude no meio literário.




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