Ilustração: Bruna Mitrano
ser mulher é uma bênção
ser mulher é poder gerar & poder parir
ser mulher é ter buceta, dois seios, uma bunda grande
ser mulher é
ser loira, olhos claros, nunca descabelar-se
é ter sangue escorrendo entre as pernas & não deixar que percebam mesmo que
você corra
você nade
você dance
ser mulher é uma bênção
e desde a Bíblia é ser apedrejada queimada morta
uma contradição
eu descobri agora que
não sou mulher
estou viva
nunca queimada
nunca apedrejada
eu descobri agora que
não sou mulher
sou negra, sou apenas uma negra
e o sangue que vem do meu ventre
permito que seja rio
que volte pra terra e
corro
nado
danço
descabelo-me
eu descobri agora que
não sou mulher
eu tenho pinto
apenas um seio
quadril estreito
nunca pari
eu descobri agora que
não sou mulher
ser mulher é uma bênção.
ser mulher é poder gerar & poder parir
ser mulher é ter buceta, dois seios, uma bunda grande
ser mulher é
ser loira, olhos claros, nunca descabelar-se
é ter sangue escorrendo entre as pernas & não deixar que percebam mesmo que
você corra
você nade
você dance
ser mulher é uma bênção
e desde a Bíblia é ser apedrejada queimada morta
uma contradição
eu descobri agora que
não sou mulher
estou viva
nunca queimada
nunca apedrejada
eu descobri agora que
não sou mulher
sou negra, sou apenas uma negra
e o sangue que vem do meu ventre
permito que seja rio
que volte pra terra e
corro
nado
danço
descabelo-me
eu descobri agora que
não sou mulher
eu tenho pinto
apenas um seio
quadril estreito
nunca pari
eu descobri agora que
não sou mulher
ser mulher é uma bênção.
xxx
para este
país
para este país
eu traria
os documentos que me tornam gente
os documentos que comprovam: eu existo
parece bobagem, mas aqui
eu ainda não tenho esta certeza: existo.
para este país
eu traria
meu diploma os livros que eu li
minha caixa de fotografias
meus aparelhos eletrônicos
minhas melhores calcinhas
para este país
eu traria
meu corpo
para este país
eu traria todas essas coisas
& mais, mas
não me permitiram malas
: o espaço era pequeno demais
aquele navio poderia afundar
aquele avião poderia partir-se
com o peso que tem uma vida.
para este país
eu trouxe
a cor da minha pele
meu cabelo crespo
meu idioma materno
minhas comidas preferidas
na memória da minha língua
para este país
eu trouxe
meus orixás
sobre a minha cabeça
toda minha árvore genealógica
antepassados, as raízes
para este país
eu trouxe todas essas coisas
& mais
: ninguém notou,
mas minha mala pesa tanto.
para este país
eu traria
os documentos que me tornam gente
os documentos que comprovam: eu existo
parece bobagem, mas aqui
eu ainda não tenho esta certeza: existo.
para este país
eu traria
meu diploma os livros que eu li
minha caixa de fotografias
meus aparelhos eletrônicos
minhas melhores calcinhas
para este país
eu traria
meu corpo
para este país
eu traria todas essas coisas
& mais, mas
não me permitiram malas
: o espaço era pequeno demais
aquele navio poderia afundar
aquele avião poderia partir-se
com o peso que tem uma vida.
para este país
eu trouxe
a cor da minha pele
meu cabelo crespo
meu idioma materno
minhas comidas preferidas
na memória da minha língua
para este país
eu trouxe
meus orixás
sobre a minha cabeça
toda minha árvore genealógica
antepassados, as raízes
para este país
eu trouxe todas essas coisas
& mais
: ninguém notou,
mas minha mala pesa tanto.
xxx
condição:
imigrante
1.
desde que cheguei
um cão me segue
&
mesmo que haja quilômetros
mesmo que haja obstáculos
entre nós
sinto seu hálito quente
no meu pescoço.
desde que cheguei
um cão me segue
&
não me deixa
frequentar os lugares badalados
não me deixa
usar um dialeto diferente do que há aqui
guardei minhas gírias no fundo da mala
ele rosna.
desde que cheguei
um cão me segue
&
esse cão, eu apelidei de
imigração.
2.desde que cheguei
um cão me segue
&
mesmo que haja quilômetros
mesmo que haja obstáculos
entre nós
sinto seu hálito quente
no meu pescoço.
desde que cheguei
um cão me segue
&
não me deixa
frequentar os lugares badalados
não me deixa
usar um dialeto diferente do que há aqui
guardei minhas gírias no fundo da mala
ele rosna.
desde que cheguei
um cão me segue
&
esse cão, eu apelidei de
imigração.
um país que te rosna
uma cidade que te rosna
ruas que te rosnam:
como um cão selvagem
esqueça aquela ideia
infantil aquela lembrança
infantil
de sua mão afagando um cão
de sua mão afagando
seu próprio cão
ficou em outro país
ironicamente, porque a raiva lá
não é controlada
aqui, tampouco:
um país que te rosna
uma cidade que te rosna
ruas que te rosnam:
como um cão
: selvagem.
xxx
não temos
fronteiras
você diz
não temos fronteiras
você diz
não temos fronteiras
para
dizer que somos um, que
a pele do
outro ainda é si, nós
o mesmo
chão.
você diz
não temos fronteiras
para me
enganar, pergunto.
você diz
não temos fronteiras
eu nego
forçando
o meu olhar nas
cicatrizes
que insistem
limites
tão leves, mas que
se
fôssemos em mapas
se fôssemos países ainda
estariam
lá, ainda
ensaiariam
abismos
mínimos.
você
repete
não temos fronteiras
porque
para você
essas
linhas são
apenas
detalhes
dentro de
poemas.
xxx
há uma
arquitetura
no corpo
o encaixe
de um tijolo
que
facilita
e ou
dificulta.
há uma
arquitetura
no corpo
que
edifica mas
me desaba
há
uma
arquitetura
no
corpo
dizem:
sábia
embora
não explique
esse peso
nos meus pés
que
prevejo desabamentos
embora
não explique
esse
vazio no meu tórax:
impreenchível
qual
ciência determinou que
minhas
mãos não
demorariam
ao segurar?
há uma
arquitetura
no corpo
dizem:
sábia
em mim:
inexata.
xxx
talvez
você
tenha aprendido a
amar
com os
gatos
ainda
recém-nascido foi resgatado,
pergunto.
talvez
você
tenha aprendido a
andar
com os
gatos
talvez
você
tenha aprendido a
se
comunicar
com os
gatos
aquela
integração em:
voz corpo
personalidade,
você
domina
a prática
em
não
permanecer.
talvez
você
tenha aprendido a
amar
com os
gatos
mas eu
eu faço
parte daquele time
que não
entende
gatografia.
xxx
a partir de uma nota crítica
l.,
queria
rir contigo
das
frases exageradas
de c.
sobre os
poetas que somos
você eu & tantos outros
nesses
anos dois mil
tantas
propostas sobre
o que
devemos ser fazer
onde
então
esconder
a espontaneidade
c. não
nos diz.
l., se
te
previssem como
seria ser
poeta neste século xxi
você
ainda aceitaria
você
ainda escolheria
ser
poeta?
como
adília já perguntou
se ainda
escrevêssemos em peles de bezerros recém-nascidos,
você se
atreveria a sacrificar estes animais?
l., hoje
pensei em
te ligar
estados de distância entre nós, mas
preferi
relembrar
os seus
silêncios e
imitá-los
preferi
relembrar
a sua
confissão
não curto ana c.
diante da
minha cara amarga
como eu
quis te odiar
naqueles
segundos
depois,
ainda
vários
questionamentos sobre
as
classificações de poesia
apenas para deixar tudo organizado:
círculos
com círculos
mantermo-nos
sempre entre iguais:
por que é
só dessa forma que
as coisas podem existir?
l.,
você já
pensou como
c. nos
responderia
essa
questão?
Lubi Prates nasceu em 86, em São Paulo. É graduada em
Psicologia e está se especializando em Psicoterapia Reichiana. Tem publicado o
livro coração na boca (Editora Multifoco, 2012, republicado pela Patuá, 2016) e
triz (Patuá, 2016) e algumas participações em revistas e antologias literárias
nacionais e internacionais. Edita a revista literária Parênteses, é tradutora e
dedica-se, principalmente, a ações que combatem a invisibilidade da mulher e da
negritude no meio literário.
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