quinta-feira, 26 de maio de 2016

Carla Diacov











































comer com duas facas

hoje eu quero falar sobre
bárbaras relações
elefantes violentos se identificam
com rinocerontes acanhados
é assim que funciona com os animais
racionais
hoje quero falar
sobre racionais relacionamentos
o homem sabe que o gato pensa
sente calcula pondera
sentir é próprio da racionalidade imposta
pelas raízes pelo primeiro e grande olho
um advogado ama outro advogado que morreu há pouco
um amigo leviano estende o braço ao leviano amigo
tira o amigo da beira do abismo para escravizá-lo
com flores da caridosa abelhinha da absolvição
essa desgraça de raça troll sentimental
um perdão ama outro perdão que morreu há pouco
hoje eu quero falar sobre relacionamentos inter-raciais
ou você pensa que a sabiá não lhe atacou por amor à raça humana?
e hoje eu quero calar sobre banquetes e lendas amorosas
quero pensar que o mundo é chato feito uma panqueca
e acaba num precipício se não for enrolado



xxx


comer com dois garfos

eu gosto muito de você
você tem um rosto bom
dois olhos no lugar correto
a boca que se movimenta quando
é perguntada
seu nariz tem a pontinha toda luminosa
suas maçãs são rosadas e no tamanho perfeito
para o seu tipo de rosto perfeito
seus ombros me dizem coisas bonitas
o espaço entre eles é bonito e cabível
gosto quando você separa os joelhos só para juntar os joelhos de volta
seu pé esquerdo é inquieto e o direito
foi contaminado pelo esquerdo
parece
em sapatos corretos isso é perfeitamente
contornável
seus mindinhos são tortos
mas isso é tão bonito quanto as luvas que te dei
sua memória é seletiva
mas conto com sua boca dócil
gosto de você assim
e assim porque assim você é linda
porque você é linda porque você é meiga
porque cabe atrás da minha orelha
da minha história do meu casaco da minha mãe
do meu currículo do meu retrato na escolinha tia Shush
porque cabe atrás da minha orelha
como um cigarro como uma menina com uma flor










































dois pontos pescoço – sou a santa do nicho pescoço



:
grito
MU
e com as unhas
seguro o pescoço que me esgana
até que a resposta seja ragu para o domingo nadar
sossegado

a pergunta
o mambo que não justifica o tempo
tem de sumir com o mau hálito

meu privilégio é meu pescoço
meu privilégio me esgana
meu privilégio quer meu chá e minha menor
performance
ele quer meu oco







:
e descobriram um tipo de pescoço que diz a verdade
sobre as coisas que acredita dizer
e descobriram que não há outro tipo de pescoço







:
a nostalgia:
esperar o pescoço do urubu
enquanto não
bater uns ovos
amaciar a maminha
depenar a galinha e um sovaco só
depilar as ruas depenar-se sobre os papéis
fazer coroar um amontoado de sapos vermelhos
ligar uns pontos para ser justa outra vez
levantar o peso das noites pelo sexo
para ser justa outra vez
repetir a trégua entre uma perna e a outra
apontar a trégua para o céu e
mudar a lua de estado mudar a lua de lugar de forma e tom
para ser justa outra vez
para ser sincera
um tanto de
contrações também na nostalgia
pelo amor de deus
essa costela veio ao vácuo?
seja justa
dona







:
é um milagre o pescoço estar onde está
ascendido num ponto da brancura do atlas
jogado na cabeceira da carcaça
flutuando na praça com a boca cheia
de pipoca e argumentos herbicidas
repartido atrás do poste
no colo da senhora Y
angustiado e problemático
queria tanto ser catalogador de gravetos em L
delator de goteiras retas
contador de monstruosas infâncias
pescoço puro ou só
daí que é um milagre estar onde está
ascendido na escuridão
entre o livro e o torso da vítima número 139
na rua F
pescoço da cidade pescoço
do estado







:
nenhum pescoço é inocente
nenhuma música no pescoço condenado
ao remate
e variações do pescoço sem gogó:
estende as cordas sobre o lençol
pensa branco
pensa azul e vermelho:
janelas que não revelam o pescoço
pelo pescoço nenhum acidente involuntário:
não diga depressa sem coçar a nuca:
é pescoço não ter um olho mais à popa:

no varal estende as cordas e um
longo pigarro aos corvos

antes assim antes assim antes que a
a faca atravessada seja o pescoço







:
o desconcerto róseo do pescoço satisfatório
suas costas mal costuradas
quase livre de ser gargalo
e então o gato derruba a porta
e então tudo volta a ser pescoço de roer barcos do futuro imediato e que quase nunca
nunca vibra







:
num belo dia começamos
a cortar o bife de forma Abramovic
usamos os olhos para a perdição num ponto
futuro da biografia da trepadeira
enfiamos o dinheiro nas vísceras do garçom
escovamos os dentes pelo amor ao além-latrina
esmurramos a castanha com a obsessão do esquilo no pano de prato
abrimos o livro com a paixão da pavimentação
estacionamos o carro sobre o pescoço do pipoqueiro
comemos pipoca com a boca do engraxate
engraxamos as poltronas e amanteigamos as calcinhas
num dia terrivelmente belo
morremos atropeladas pelo ciclo da mandioca
mas aí então
tudo brota a ser arpão
tudo é seta para onde
tudo é jeito e boa trama então







:
o nível da saliva vai subir e
o amor vai ser adiado para outro beijo
um em sedimento
dentro daquele livro
respeitosamente junto da flor escrita como o diabo
em memória do caminho vermelho
pelo pescoço
o nível das folhas secas vai subir
por isso mesmo
preenche saber
a consanguinidade outra
pelo nível do amor
o nível dos verbos vai subir
e os pescoços serão sinais flutuantes do novo horizonte:







:
começou com alguém segurando minha cabeça
então seguro uma mão com minha cabeça
e mais uma mão e com ela
mais uma dúzia
estou chorando
estou babando
e tudo começou com o medo de cair
digo
com a razão que queima e faz os nervos de cair
riscos nas bochechas
faz o errado ininterrupto vibrar os dentes
agora seguro muitas mãos na cabeça
e o segredo insiste aceder
a lubricidade neural rumorosa eleita
amanhã serei pescoço com cabeça para
oitenta e tantas mãos mais centenas de dedos
escolhidos a bafo







:
perfeito
diferente molhado
o primeiro pescoço que eu soube
saindo da onda
me adora me faz adorar a onda
desentendida entre tanto de nível e espuma
eu via um barco no céu
via uma ilha em chamas
sabia o perfeito molhado
me via por detrás e nua
meu próprio pescoço
aparador de ganchos
aparador dos tentáculos dos cabelos todos
meus seus do marinheiro no bico da gaivota



perfeito molhado salgado
o primeiro momento me adora diferente
se me sabe ave desengonçada?
se me sabe agasalho afogado?







:
tenho uma memória inquieta
tenho um pescoço de criança
conforto em lã com cheiro de avô
lavanda
canela com leite morno
nada mau
diriam
para uma antiga casa abandonada
nada mau
dizem
nada nada mau
comenta quem acabará por morder meu pescocinho mofo







:
o pescoço sabe esperar
pode fazer esperar a cabeça
espera a lâmina
espera
espera o fim da piada e espera até o último vagão
faz a cabeça afastar as orelhas mas espera
é o dilúvio não é o dilúvio
espera
o pescoço é filho de uma outra época
áspera espera
o pescoço é filho de uma outra puta
tempo bom







:
no inverno
vou jogar meu pescoço para trás
largar um pensamento horrível no cúmulo
de uma pedra sob o sol
faço por você
mostro um pedacinho da minha arquitetura
por você
para que você não fique com a impressão
e sim com a certeza:
não sei lidar com meu próprio sumiço
com a destruição
palmo a palmo
daquilo que em nós dois
soma estações tectônicas com
flores daninhas entre os desencaixes







:
tenho um meu pescoço
todo em folha
responde ao vento mas gosta da ciência humana
insiste
mas
gosta muito da ciência humana
VENHA VENHA
MENDIGUINHA EM CHAMAS
POUSAR MINHA NUCA
FAZER PROMESSAS QUE ME REINVENTAM LASSIDÃO







:
dor de garganta
é também sintoma de medo
pois tenho medo
dos milagres acontecendo
dos olhos gordos sobre os milagres
tenho medo dos milagres testemunhados
mais ainda dos milagres correndo bocas escovadas
alvejadas azulejadas
dentes ajuizados
amídalas cheias de vida e de xarope do pólen mais vivo que abelha viva
pescoços esticadinhos
vou morrer de dor de garganta porque tenho medo demais
me sinto pervertida hoje
e como me dói a garganta
sinto nos pés o gosto da passagem do palavrão que não sai
não tem onde ir
tenho medo e não tenho bolas para
relocar o pescoço
a garganta
e admito:
preciso morrer dessa dor














































assaltam-me Carla Diacov (1975 – 1975). corto pinto escrevo e bordo especialmente corto pinto. não gosto da vírgula e nem ela de mim. sinto fome quando o bob (o dylan) diz tambourine perto do meu ombro ou quando a lady (di) pisca pra mim. abonando isso tanto sei que vou me apaixonar de tudo um sempre agora por exemplo tudo. e ah sim: sou serial. dá-me um dadinho ou manteiga de amendoim e eu lhe mostrarei a minha pequeníssima dança que me dança e me demonstra ridiculamente feliz. aqui duas gavetas para todas as minhas gavetas:
 


* Todos os créditos pelas imagens do post são também de Carla Diacov.



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