domingo, 3 de abril de 2016

Taís Bravo







































Essa cidade:

O exílio é a umidade que sustenta o céu desta cidade. O exílio é São Conrado às 16:57 de uma sexta-feira. O exílio é te ver atravessando a rua como uma terra conquistada e em extinção. O exílio é não encontrar as memórias que guardei em cada mesa do nosso bar. O exílio é todo verão começar o mesmo de novo. O exílio é passar purpurina como uma veste de guerra. O exílio é o quarto dos pais em seu segredo original. O exílio é estar indiferente ao pôr do sol visto da Urca. O exílio é passar por aquela porta com gosto de ruína. O exílio é nunca mais arriscar a Baía de Guanabara. O exílio é o Bar da Cachaça. O exílio é se aproximar lentamente de cada montanha e não entender nada. O exílio é depois de uma certa idade as pessoas não mudam mais. O exílio são nossos diplomas e suas expectativas. O exílio é aquela tese que virava as dores como lajes. O exílio é uma fotografia esquecida em um dispositivo móvel em que uma noite - com a ajuda de um aplicativo - emerge transfigurada em armadilha. O exílio são as rosas rejeitadas por Iemanjá. O exílio é a janela com vista para um rio morto. O exílio é encontrar o equilíbrio estático que sela os poros para ser enfim independente das fases da lua. O exílio é minha pílula anticoncepcional. O exílio é sempre voltar pra casa. O exílio não são duas linhas. O exílio não é um lugar. O exílio é o começo daquele dia em que sem saber o motivo só assenti. O exílio parece áspero e é precisamente onde se pode descobrir. O exílio só termina quando se sabe que não tem fim. O exílio te implora para não olhar e quando você encara de fato está. O exílio é buscar saídas.


xxx



a civilização ocupa
todos os lugares
de morte
com filtros
castelos fortes ruínas
puídos sítios
entre outras obras
à branca beleza imposta
em leves trilhos
até o MAR
ou ao Amanhã
a história se corta
em anedota
.
em uma esquina bate
a onda amarga
na língua tem dias
que é inevitável
aquele 1%:
unha que lateja
estômago que arranca
sangue que mancha
tua calcinha que entra entre
as linhas em extinção
os astros no comando
a TVBus que informa
translação de pontos
a inconstância deve ser
o excesso de água
no mapa da cidade
teu tamanho não é
nem 1%
.
fora dos planos
se exalta o resto
tudo já está em fim
.
minúscula
tem dias que é
inevitável ser
eterna num mergulho
descobre em matéria
a memória da origem:
areia que rebenta da montanha
.
os nomes completos
são a primeira lâmina


xxx


o motorista me responde que sim
é direto
é uma satisfação
poupar alguns minutos
em trânsito
tenho um pé na escada e outro no chão
na hora que pego o impulso
reparo
a Central molhada
sem proteção
nesse instante desejo:
ser amada aqui
nesse lugar
nessa língua
pela vibração em que respondo
obrigada
e saco meu Bilhete Único
uma sério de gestos
que domino
sem hesitar
tento te ver
nesse contexto
desarmado
o amor talvez seja
sempre quebrar
os hábitos
no entanto sustentam 
um rumo disponível 
às vezes a repetição
não é
monotonia 
não é 
falta
pode ser 
um guia
pode ser
desenhar um mapa
com a carne
dos dedos 
toco as teclas
sem enxergar
suas letras formo
palavra 
passos 
de dança 
memória 
física
a história
é um sopro encarnado
entre as paredes e línguas e peles
ser amada aqui
em uma cidade que exige
que sua
que avacalha
que muda
as linhas
a cada 3 meses
e sufoca a rotina
e gargalha da estabilidade
quando subo no 315 Central – Recreio é uma vitória 
porque sabe-se lá até quando 
sabe-se lá quantas novas linhas 
a extinguir narrativas
então quando subo no 315 Central – Recreio
enxergo que grande parte do meu ser não é
feito de sublimações e essencias
grande parte do meu ser se faz
entre essas linhas
que traço e apago diariamente
pela cidade
Alvorada – Del Castilho – Cinelândia
Rua da lapa – Cinelândia – Central – Recreio
grande parte do meu ser é
deslocamento
automático
como meus dedos
a dançar palavras
sobre as teclas 
quase porque às vezes faísca
espera trânsito barracos 
e desencontros
hoje no 614 Alvorada – Del Castilho 
vi um rapaz confuso e o motorista indisposto
vi uma garota se aproximar talvez oferecendo ajuda
eles conversam claramente ele não é daqui
ela parece mais certa
do que faz imagino se
pela ajuda vão iniciar um contato trocar contato marcar uma cerveja começar algo
então entendo que na verdade já existe são algo
um casal nesses tempos nunca se sabe o termo certo mas são
algo ela só foi ajudar depois de um tempo porque está magoada
com algo depois dos minutos em que se explicam
passam o resto da viagem em silêncio
um ao lado do outro 
pelo silêncio compartilhado vejo que são
algo
na hora de descer a fila se forma com antecedência
ele se aproxima muito com indiferença
ela permite
ela desce em passos rápidos ela sabe
pra onde ir
ele segue afobado
caso a perca não sabe
para onde seguir em Del Castilho 
eles ficam na fila para comprar um bilhete
eu sigo em passos de quem sabe o caminho mais do que gostaria 

então quando subi com certeza no 315 –EXPRESSO
a repetição do impulso
sem hesitar
o amor é sempre
quebrar hábitos
se fazer estrangeira
em terras sem raiz
é atalho
no mais íntimo
dos movimentos 
guardados de cor
entre a língua a pele e as paredes
desejo 
laço que faz
dos pontos
de passagem
escolha


xxx



eu lembro de esbarrar com você
quando brigava com outro garoto
que acabou se tornando meu amigo
próximo ou não tanto
(por que quem tem amigos próximos aos 25 anos?)
ali era um ponto de ônibus
desses que desapareceu
de um dia para o outro
a linha do ônibus também mudou
de 2016 para 318
e o ponto mudou
outras três vezes
até se tornar Central

eu pareço ser a única
que carrega
esses rearranjos
em cada trajeto
um novo garoto
passeia
pelas minhas coxas
se encontra as rasuras
em alto relevo

quando atravesso
temendo facadas
a Rio Branco
ainda adormecida
talvez já
desponte
a próxima linha

por enquanto
faço sinal
à casca
que arranco
só para deixar
sua marca


xxx



eu nem gostava de Wes Anderson
assim como eu
não gostava de você
à primeira vista
alguma coisa acontece quando
a Nico começa a cantar
em um cinema em que
— supostamente —
Almodóvar já chorou
assim como eu
naquela cena
sangue começa a jorrar
alguma coisa acontece quando
você é terrivelmente gentil
me deixa em dúvida
de onde sou
ser legal é dar mole
mas você não
você apenas é
alguma coisa acontece quando
eu até te deixo abrir portas
eu esqueço aquela cena
eu esqueço pra quem escrevia
eu esqueço que fui
alguma coisa acontece quando
em seu rosto marca
reconhecimento inédito
e eu não só posso
como quero te dizer
que sim
alguma coisa acontece quando
falamos sobre o medo
de voar e você finalmente
se inclina e eu tomo fôlego
e alguma coisa acontece quando
Wes Anderson continua chato
rodando para olhos fechados
graças a deus


xxx


tenho te lançado em todos
os rios me atravessam
como um sacrifício
passo horas
mirando águas
sem promessa
repito a sabedoria
de tão gasta se faz clichê
precisamente sua verdade:
tudo se gasta
faltam 317 dias para tuas células nunca conhecerem as minhas
um eclipse já me trouxe de volta
ainda que não queira
o conforto daquela pele
ser áspera é um exercício
me mantém
em outro cenário
se me limpam as águas,
a origem faz porto
em meu sotaque
a memória, insistência
em conversas de bar
cerveja espreme os poros
em todo mundo
não há solução
encaro as águas
sem tempo ou nome
gasto a fita das palavras
não ouso ocupar outras línguas
com a mesma dor
só abandonar
sem saber
depois de se pôr
pode vir
a noite ou não
encaro essas águas

como quem faz casa
no topo de um vulcão
dorme e acorda
e descobre muito
mais que a paz





Taís Bravo é escritora e tradutora. Colabora com a Editora Alpaca e as revistas Capitolina e Ovelha. Criou, junto com Natasha Ísis, a newsletter colaborativa Mulheres que Escrevem. Gosta mais de ir à praia do que de existir.




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